sábado, 11 de setembro de 2010

A marcha do Brasil para a cobertura universal.

A reforma histórica realizada pelo Brasil em 1988, permitiu que milhões de pessoas obtivessem a cobertura de saúde, mas o sistema carece de fundos suficientes, relata Cláudia Humphreys e Jurberg Gary em uma série sobre o financiamento da saúde.

Em 1988, a metade da população do Brasil não possuía cobertura em saúde. Passadas duas décadas desde que estabeleceu o SUS (Sistema Único de Saúde), estima-se que mais de 75% dos quase 190 milhões de pessoas dependem exclusivamente do SUS para atenção médica. Uma das beneficiárias é Marlene Miranda da Cruz, de 44 anos, que mora na favela de Manguinhos no Rio de Janeiro e recebe assistência através do Programa de Saúde da Família (PSF).

Marlene da Cruz tem como sua fonte de renda a venda de produtos de beleza, tem dois filhos, e um deles sofre de problemas neurológicos e é acamado. Meu filho necessita de atenção 24 horas por dia? ela diz. ?enquanto isso tenho que tomar conta de meus quatro netos?. Hoje ela foi a Clinica do PSF por que seu neto contraiu Catapora. ?Eu sei que serei bem atendida aqui", diz ela.

Marlene Miranda da Cruz é uma das 35 000 pessoas atendidas pela clínica de Manguinhos, que está a cargo de 11 equipes de profissionais de saúde, incluindo médicos, enfermeiros, dentistas e agentes comunitários. "No final do ano haverá 16 equipes para atender 45 000 residentes de Manguinhos ", disse Alex Simões de Melo, gerente da clínica.

O Programa Saúde da Família, que possui a cobertura de cerca de 97 milhões de brasileiros, é um componente chave do Sistema Único de Saúde. Emprega mais de 30.000 equipes de profissionais de saúde que concentram esforços para chegar às comunidades mais pobres e isoladas do país.

Além de fornecer atenção primária gratuita, principalmente por meio do Programa de Saúde da Família, o Sistema Único de Saúde oferece uma ampla oferta de serviços hospitalares, entre eles, cirurgia cardíaca, avançado diagnóstico laboratorial e por imagem. Também oferece suporte a um robusto programa de vacinação, campanhas de prevenção, atendimento odontológico básico e um subsídio de 90% de muitos medicamentos essenciais.

A descentralização tem desempenhado um papel fundamental na reforma do financiamento da saúde no Brasil. Em 1996, por meio de lei especifica foi transferido, parte da competência de gestão e financiamento das ações e serviços de saúde para os 26 estados e mais de 5.000 municípios. Os estados são obrigados a destinar pelo menos 12% do orçamento total para a saúde e os municípios devem investir 15% do seu orçamento na saúde. O governo federal também contribui com o financiamento da saúde por meio do dinheiro arrecadado com impostos.

Na esfera municipal este sistema parece funcionar bem: em 98% dos municípios cumprem a exigência de 15% do orçamento e alguns gastam mais de 30%, de acordo com Antônio Carlos Nardi, secretário de Saúde e presidente do Conselho Nacional de Secretários de Saúde (Conasems).

"As comunidades estão ativamente envolvidas nas decisões sobre os orçamentos municipais", diz a professora Sulamis Daim, Universidade do Estado do Rio de Janeiro.

"O município de Maringá é um exemplo importante de participação popular", diz Antônio Carlos Nardi, uma vez que a comunidade "participa de debates do município, nos processos de alocação orçamentária, na supervisão das contas e na aprovação dos relatórios anuais de gestão". O município de Maringá, a 400 km a oeste de São Paulo, Paraná, destinou mais de 20% do orçamento total de saúde nos últimos seis anos, bem acima dos 15% exigidos.

Este tipo de compromisso é menos evidente em nível estadual, uma vez que mais da metade dos 26 estados não cumprem a meta de financiamento dos 12%. "Um das deficiências deste sistema é que o conceito de despesas de saúde é muito amplo", diz o Dr. Francisco de Campos, secretário nacional do Departamento de Recursos Humanos em Saúde no Ministério da Saúde. "Alguns estados têm destinado o dinheiro para ações de saneamento ou de financiamento de planos de saúde complementares para os funcionários públicos. Embora isso possa repercutir indiretamente na saúde da população, devemos definir com maior precisão os custos de saúde".

No nível federal, o principal problema é a falta de recursos. De acordo com as Estatísticas Sanitárias Mundiais (World Health Statistics) 2010, publicado pela Organização Mundial da Saúde (OMS), a despesa em saúde por habitante do Governo do Brasil em 2007 foi US$ 252, atrás de países vizinhos, como Argentina, US$ 336 e Uruguai, US$ 431. De acordo com o Dr. Gilson Carvalho, consultor do Conselho Nacional de Secretários Municipais de Saúde, os fundos públicos necessários são de cerca de US$ 73.000 milhões para apoiar o sistema amplo de cobertura universal do Brasil. Isso sugere que o Governo deveria gastar mais de US$ 100 dólares adicionais por habitante atualmente.

Em 1996 o Governo Federal instituiu um imposto sobre as transações financeiras especificamente para financiar a saúde, que em 2007 permitiu recolher cerca de US$20.000 milhões. No entanto, o imposto foi eliminado devido a preocupações com a excessiva carga tributária e a suspeita de que os fundos não estavam sendo inteiramente dedicado à assistência médica conforme planejado. "Isso provocou uma queda imediata na receita proveniente do Ministério da Saúde", diz Francisco de Campos.

José Noronha, ex-secretário de saúde do Rio de Janeiro e do Ministério da Saúde, diz que: "Se o orçamento do Ministério da Saúde ainda estivesse baseado no arcabouço legal de 1988, seria mais do que o dobro do que é hoje".

Na reforma constitucional de 1988 que instituiu o Sistema Único de Saúde, foi determinado que 30% do orçamento para a seguridade social seriam destinados à saúde. "Se 30% do orçamento da seguridade social tivesse sido dedicado aos cuidados de saúde nos últimos 20 anos, o Sistema Único de Saúde estaria no mesmo caminho do sistema público integral de saúde em vigor na Europa e no Canadá, em consonância com princípios de cobertura universal, equitativo e com a participação social no financiamento, "diz Nelson Rodrigues dos Santos, presidente do Instituto de Saúde Direitos.

Sulamis Daim, da Universidade do Estado do Rio de Janeiro, percebe uma falta de compromisso do governo federal, que segundo ela repercute em um impacto direto sobre o Sistema Único de Saúde. "Hoje há um declínio significativo no percentual de gastos federais destinados à saúde em relação às receitas fiscais. Desde a criação do Sistema Único de Saúde, a insuficiência de verbas tem dificultado os investimentos para expandir a oferta de serviços reduzindo a remuneração de procedimentos e serviços", assinala.


O financiamento insuficiente, associado à deterioração das infra-estruturas básicas de saúde e falta de pessoal hospitalar. Muitos pacientes, ao invés de acessar serviços de atenção primária, só entram em contato com o sistema de saúde no último minuto, às vezes por meio dos serviços de emergência. "Como resultado os atendimentos estão saturados com longas filas e listas de espera", diz Nelson Rodrigues dos Santos.

Não é surpreendente que muitos brasileiros optem pelo setor privado para evitar tais atrasos e frustrações. O Brasil tem implementado um sistema de duas camadas, que oferece às empresas e indivíduos particulares a oportunidade de comprar serviços de saúde através de seguradoras privadas reguladas pela Agência Nacional de Saúde Suplementar (ANS). As pessoas que contratam um seguro privado se beneficiam da isenção fiscal, mas ainda tem de contribuir para o Sistema Único de Saúde através do seu imposto de renda. O percentual de pessoas que pagam o seguro privado tem aumentado desde 1988, e no ano passado mais de 20% da população optou pela cobertura privada. Vale salientar que esta opção só está disponível para as pessoas com rendimentos mais elevados, os mais pobres devem se contentar com o Sistema Único de Saúde.

Apesar de problemas de financiamento, o Brasil tem registrado melhorias significativas nos indicadores de saúde. "A descentralização, a ênfase na atenção básica e o estabelecimento de transferência automática de recursos federais para os municípios têm um impacto importante sobre os indicadores de saúde", diz José Noronha.

A mortalidade infantil diminuiu de 46 por mil nascidos vivos em 1990, para 18 por mil nascidos vivos em 2008. A expectativa de vida ao nascer para ambos os sexos também aumentou de 67 em 1990 para cerca de 73 anos de 2008. As desigualdades regionais também reduziram. A diferença da expectativa de vida por exemplo, da região sul, mais rica, e do nordeste era de 8 anos em 1990; esta lacuna diminuiu tornando-se a diferença de 5 anos em 2007.

"O Brasil tem feito grandes progressos, mas ainda há muito a ser feito", diz Francisco Campos. "Precisamos de experiência de gestão e dinheiro. se nós apenas limitarmos a investir mais dinheiro no sistema sem monitorar as despesas não haverá melhorias no serviço."

Referência:
JURBERG, Claudia e HUMPHREYS, Gary. Brazil 's march towards universal coverage. Bulletin of the World Health Organization. Volume 88, Number 9, September 2010, 641-716. Publicado no site da World Health Organization. Disponível em
http://www.who.int/bulletin/volumes/88/9/10-020910/en/index.html . Acesso em: dia 08 de setembro de 2010. Traduzido em português pela assessoria técnica do Conselho Nacional de Secretarias Municipais de Saúde (Conasems).

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