segunda-feira, 22 de fevereiro de 2010

O SUS e o sentimento de pertencimento.

*Lenir Santos


O direito à saúde, consagrado na Constituição e garantido pelo Sistema Único de Saúde (SUS), vem sendo implementado pelos municípios, estados e União, muito mais em razão de um movimento sanitário composto por especialistas, secretários de saúde, conselheiros de saúde, membros do Ministério Público do que por vontade da população, em especial a mais rica.

Por que a sociedade nem sempre reconhece os direitos sociais como a saúde, a educação, a segurança publica, como um direito de cidadania?

Isso tem a ver com diversos fatores e também com o sentimento de pertencimento. Não há um sentimento de pertencimento da população em relação ao SUS. Todos os segmentos sociais buscam garantir, de algum modo, um plano de saúde: trabalhadores pelos seus dissídios coletivos; servidores com serviços próprios; ministério público, judiciário, parlamentares, autoridades públicas sanitárias, todos pretendem (ou já tem garantido) um plano de saúde institucional; e os secretários de saúde muitas vezes dirigem um sistema que não usam.

Por isso a população mais rica não se compadeceu da discussão da CPMF que destinava anualmente 16 bilhões à saúde; grande parte da sociedade se calou antes e depois da derrubada da CPMF por não usar o SUS, e se o usar, pretender, o mais breve possível, ter um plano de saúde.

A classe média quando reivindica, mediante o Poder Judiciário, determinados procedimentos de saúde, principalmente os medicamentos, o faz com certo desprezo pelo sistema, sem nem querer saber quais são os seus deveres para com o SUS, uma vez que não existe direito sem um correspondente dever.

Não lhe importa saber se para obter um serviço do SUS deve-se acessá-lo pelas suas portas de entrada e respeitar o princípio da integralidade da assistência terapêutica que pressupõe um conjunto de ações articuladas e continuas e não um fracionamento de atos, descolados de diagnósticos e terapêuticas indicadas pelos profissionais da saúde pública. Seria impensável em países como a Inglaterra e Espanha, alguém escolher ou pretender para si apenas este ou aquele procedimento sanitário público prescrito por profissional da saúde privada.

E o Judiciário – sem se debruçar sobre os princípios e diretrizes do SUS, dentre eles o da integralidade que garante medicamentos como uma decorrência da assistência terapêutica que, por sua vez, pressupõe um paciente em tratamento no sistema de saúde público – acolhe todos os pedidos, sem se dar conta de que está rompendo com a organização do SUS e com o princípio da igualdade daquele que, cumprindo seus deveres, entra no SUS pela sua porta de entrada, como em qualquer país que garante o acesso universal à saúde.

Essa ausência fundamental do sentimento de pertencimento ao SUS e daqueles que acham que o SUS é para a sua empregada doméstica, produzirá um SUS pobre para pobres. E enquanto o Judiciário não perguntar como esse sistema está organizado, apenas referindo-se ao amplo conceito do art. 196 da CF que também caracteriza a saúde como decorrência de políticas sociais e econômicas que evitem o risco de agravo à saúde; e garantir o direito à saúde às pessoas porque elas são “hipossuficientes” e não porque são cidadãs que devem ter seus direitos respeitados e deveres a cumprir, estará contribuindo para a sua desorganização.

Lembramos que dentre os princípios do SUS temos políticas de saúde discutidas nos conselhos de saúde; integralidade da atenção a ser garantida numa rede interfederativa de serviços, e não apenas por um determinado município; integralidade que deve ser respeitada tanto pelo sistema público quanto pelo cidadão que não pode pretender procedimentos fracionados.

O ideal não pode ser ter renda para garantir um plano de saúde; isso faz com que a sociedade se isole do SUS e se desinteresse de seu financiamento o qual deve garantir um padrão de integralidade de atenção à saúde discutido por todos. Nenhum país do mundo mantém padrão de qualidade em suas políticas publicas sem a participação da sociedade mais rica.

*Advogada, especialista em direito sanitário pela USP, coordenadora do Instituto de Direito Sanitário Aplicado – IDISA e ex-procuradora da UNICAMP.

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