terça-feira, 23 de fevereiro de 2010

Assistência Farmacêutica - Debate

Saúde é direito, e não simples mercadoria
Dirceu Raposo de Mello e Gustavo Henrique Trindade da Silva

As novas regras para farmácias e drogarias aprovadas em agosto de 2009 pela Agência Nacional de Vigilância Sanitária (Anvisa) e que entraram em vigor nesta semana reacendem um antigo debate na sociedade brasileira: saúde é direito ou simples mercadoria?
De acordo com o regulamento, as farmácias e drogarias terão que cumprir novas regras sanitárias. Alguns medicamentos isentos de prescrição, que apresentam maior risco e necessitam de maior cuidado e orientação de uso, permanecerão atrás do balcão.
A comercialização de outras mercadorias deve atender ao disposto na legislação federal vigente, ou seja, somente podem ser comercializados produtos relacionados com a saúde.
Apesar de mais de dois anos de discussão, do apoio do setor de saúde e de representantes dos consumidores, as medidas têm sido questionadas pelo comércio. A principal crítica? A restrição da venda de mercadorias que nada têm a ver com a saúde e a disponibilidade de medicamentos nas gôndolas nos corredores das farmácias e drogarias.
A falsa imagem de inocuidade, quase divina, que os medicamentos transmitem ao senso comum da população é reforçada tanto pela falta como pela qualidade da informação que chega aos usuários, aliadas à descaracterização das farmácias e drogarias como estabelecimentos de saúde, transformadas em simples atividades de comércio, colocando em risco a saúde da população.
Farmácias não são mercados, e medicamentos são produtos que necessitam de cuidados especiais em sua utilização. Isso precisa ficar claro para a população.
A assistência farmacêutica não se limita à aquisição e distribuição de medicamentos com qualidade, segurança e eficácia garantida pelos fornecedores. Prescrição, dispensação e uso correto dos medicamentos são fatores essenciais para o êxito do tratamento e pressupõem o acesso ao produto adequado para uma finalidade específica, em quantidade, tempo e dosagem suficientes, sob orientação e supervisão farmacêutica.
Nem mesmo os medicamentos isentos de prescrição médica estão livres de riscos. Caso contrário, poderiam ser comercializados nos supermercados ou em feiras, padarias e postos de gasolina, sem orientação ao usuário. Exemplos não faltam.
O acido acetilsalicílico (AAS), quando associado à insulina ou à clorpropamida, por exemplo, pode levar a um quadro de hipoglicemia. Alguns antiácidos podem diminuir a eficácia de antimicrobianos, prejudicando o resultado dos tratamentos. O uso combinado do antimicrobiano ofloxacina com o AAS pode aumentar o risco de ataques convulsivos. O paracetamol, comumente utilizado como analgésico e antitérmico, é um potente agente tóxico para o fígado em doses altas facilmente atingíveis por seu uso indiscriminado.
Ora, se regulamos a propaganda para melhorar a informação e tornar acessíveis ao cidadão orientações seguras para uso de medicamentos, somos tachados de censores. Por outro lado, se viabilizamos alternativas de acesso à informação para além da propaganda, mediante orientação de um profissional de saúde que por lei deve estar na farmácia ou na drogaria, somos autoritários.
A quem efetivamente interessam essas críticas? Será que a simples exposição dos medicamentos nas prateleiras e corredores, verdadeira estratégia logística e de marketing aplicada na venda de mercadorias em geral, garante o acesso livre e seguro a esses produtos? É óbvio que não.
A transformação de farmácias e drogarias em mercados sinaliza a visão que parte do setor tem sobre seu papel na sociedade. É lamentável que um setor de vital importância para a saúde da população esteja numa disputa pela comercialização de balas, sorvetes, bijuterias, chinelos e uma série de outras mercadorias que não possuem nenhuma relação com a proteção e a defesa da saúde. Conveniência é assegurar assistência farmacêutica de qualidade, pois antes do consumidor vem o cidadão.
Dirceu Raposo de Mello é farmacêutico e doutor em análises clínicas pela Unesp, é diretor-presidente da Anvisa (Agência Nacional de Vigilância Sanitária).
Gustavo Henrique Trindade da Silva é bacharel em direito e especialista em políticas públicas e gestão estratégica da saúde.

Medicamento nunca foi bem de consumo Sérgio Mena Barreto

Em uma época marcada pelos avanços tecnológicos e pelo pleno acesso à informação, a ANVISA põe o Brasil na contramão do mundo ao tentar impor a resolução 44/09, que proibiria a venda de produtos de conveniência e prestação de serviços nas farmácias, além de retirar os medicamentos isentos de prescrição médica do alcance do consumidor.A resolução apresenta um ponto ainda mais complexo: em muitos municípios, a farmácia funciona como correspondente bancário, prestando um serviço de grande importância à população que carece de bancos públicos ou privados. Cerca de 15 mil estabelecimentos prestam serviços como o recebimento de contas e entrega dos benefícios da Previdência Social.Soa estranho a agência colocar os remédios na categoria de bens de consumo e as drogarias na de centro de compras. Segundo a ANVISA, ao comprar um produto de conveniência na farmácia, o consumidor seria influenciado a comprar remédios. Restringir o acesso aos medicamentos isentos de prescrição médica e proibir a venda de alguns produtos na drogaria significa deixar o consumidor refém da falta de opção.A concorrência que abre um leque de ofertas desapareceria, dando lugar ao monopólio de algumas marcas e acarretando preços mais altos que os atuais. Essa decisão é um caminho inverso do de mercados desenvolvidos, em que a farmácia tem incluído não medicamentos com uma série de facilidades para o consumidor. Vale lembrar também que a norma da ANVISA está na contramão do que pensa a população. Para os brasileiros, é clara a diferença entre medicamentos e não medicamentos.Em pesquisa divulgada pelo Ibope em novembro de 2009, 73% dos entrevistados afirmaram ser contra a proibição da venda de produtos de conveniência e serviços nas farmácias. O levantamento ouviu 1.302 pessoas de seis capitais. A margem de erro foi de 3%. Os cidadãos que vivem no Brasil querem, sim, uma farmácia como a que se vê em muitos países, como EUA e Inglaterra e até nos nossos vizinhos Argentina e Chile.Colocar os remédios isentos de prescrição para trás do balcão segue a contramão do que acontece no mundo. Medicamentos dessa categoria têm por objetivo resolver pequenos males que não necessitam de atenção médica por sua própria natureza, mas também têm o papel de educar o consumidor, reduzindo impacto sobre os serviços públicos de saúde.A decisão brasileira nada mais é que uma nova forma de censurar a população, como se as pessoas não soubessem comprar. A meu ver, é a verdadeira institucionalização da “empurroterapia”, uma vez que se transfere para um funcionário da farmácia a decisão de compra. O Chile é um exemplo real dos problemas dessa iniciativa. Depois de toda a população ficar refém dos medicamentos disponíveis só atrás do balcão, do aumento da “empurroterapia” e da escalada desenfreada de preços, o governo obrigou as farmácias a colocar os medicamentos sem receita novamente fora dos balcões, com livre alcance do consumidor.Por fim, temos a questão legal propriamente dita. A ANVISA nunca teve competência para legislar. A agência é um órgão executivo com a função de fiscalizar, e atuação sempre infralegal. Somente uma outra lei poderia regular o que deve ou não ser vendido nas farmácias. No Brasil já existem 20 leis estaduais ou municipais que permitem a venda de produtos de conveniência em drogarias.Não é um alimento ou outro tipo de produto que vai prejudicar o consumidor, mas a venda de medicamentos com tarja vermelha sem receituário médico, fruto direto da falta de acesso ao médico que assola nosso país, que ainda conta com 1.600 municípios sem nenhum hospital público e mais de 400 cidades sem médico em nenhum dia do ano.A resolução 44/09 tem alguns pontos positivos. É um facilitador do processo de fiscalização, além de definir algumas regras sobre aplicação de medicamentos nas farmácias e restrição de medicamentos de tarja preta. Embora haja aspectos favoráveis, os de âmbito negativo se sobressaem. Medidas como essa da ANVISA servem de placebo, passando por cima da lei e do respeito ao consumidor.
Sérgio Mena Barreto é presidente-executivo da Associação Brasileira das Redes de Farmácias e Drogarias (Abrafarma)

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